José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e bispo de Leiria-Fátima reconheceu esta semana que a Igreja percorre um caminho penoso, sobretudo para os fiéis católicos face ao “duro combate” aos crimes de abuso sexual. Estas declarações coincidiram com o anúncio de situações de abuso e encobrimeno relativas a onze bispos franceses agora sob investigação.
Esta hecatombe de confiança que mina as convicções de todos e cada um dos membros da Igreja – local e universal – é, contudo, segundo o bispo, um tempo de purificação, na busca da justiça, através da concreta identificação dessas situações dolorosas, de modo que não se façam generalizações indevidas, nem acusações indiscriminadas e que os responsáveis de tão condenáveis crimes possam ter também um tratamento justo, nas sedes apropriadas”.
A igreja portuguesa, e não só, têm vindo a desdobrar-se em declarações de sofrimento, de desculpa e sobretudo de vergonha por comportamentos dos seus, sofrendo nas suas entranhas as dores sem fim de um ambiente comunicacional descontrolado e que há muito tempo se mostra indisponível para mostar à opinião pública o fermento que foi e é na construção europeia e na identidade de Portugal.
O antilcericalismo que todos conhecemos encontrou na tragédia da pedofilia campo aberto para “ter razão” na visão a-religiosa da vida com consequências visíveis nas orientações do poder que pela lei tem vindo a construir e a definir as condições necessárias para estabelecer uma cultura dominante que dispense a dimensão religiosa da vida das pessoas.
Sendo uma luta inglória – a antropologia explica isso – basta ao poder matizar a necessidade de uma vida social onde a experiência religiosa seja expressa na vida íntima e quando muito familiar, isto é, no domínio privado das convicções de cada um. E esta é a “norma” vigente” pelo menos a mais divulgada.
Esta tendência tem encontrado campo favorável dado o relativo silêncio da Igreja portuguesa (coisa que não existindo se reúne em Fátima sob a égide de Conferência Episcopal) nas últimas décadas sobre as questões que de facto (pre) ocupam os portugueses e que dela esperam uma palavra inspiradora, eventualmente orientadora, para que eles, em sede própria, manifestem e inscrevam a sua opinião.
O caminho penoso
A expressão “caminho penoso” acerta pois no problema e tem o interesse de nos indicar que se “faz caminho ao andar” importando para isso encontrar a atitude certa e sobretudo a palavra que ” tudo ilumina” e que bastaria, por agora, indicar. Limpar a lama da pedofilia, evidentemente, e encontrar (reconstruindo) a confiança numa instituição que sendo antiga já ultrapassou dramas estruturais e sempre teve a “sabedoria” da reconstrução.
O “caminho penoso”, e acrescentamos longo, é agora condição a ser percorrida por todos os batizados (filiados!) a quem compete – como sempre competiu – construir a igreja dos vivos, na liturgia (comício) da partilha das preocupações do dia e na partilha (alegre) do pão e do vinho recordando a tarde de quinta-feira santa.
Neste regresso, de agora e sempre, se refunda a confiança entre quem quer entrar, a alegria da pertença, e sobretudo se encontrará a força que nos permita a todos – e portanto à Igreja que somos – ultrapassar e vencer este “caminho penoso”.
As lideranças necessárias
A “igreja portuguesa” é constituída por 20 dioceses, todas elas com bispo titular, elas próprias organizadas em paróquias e movimentos eclesiais. Dão assim corpo ao que chamamos “igreja portuguesa”, interessando a cada um conhecer a respectiva dinâmica comunitária. Uma organização que ultrapassa anos e regimes, no serviço às populações que serve.
As mudanças – agora mais rápidas e evidentes – exigem uma reacção mais atenta ao pormenor e ao ritmo da comunicação que envolve toda a população e que por isso espera da sua igreja e sobretudo das suas lideranças uma narrativa comprensível e adequada ao momento.
Este esforço que a sociedade digital e global impõe e tornou o “mundo plano” porque rápido, exige das lideranças uma atitude de comunicação que “traduza” os valores de sempre numa narrativa simples e básica, identificada com a vida comuns dos crentes.
A “realpolitik” do evangelho exige no século XXI um discurso que dispense o formato do poder e se perca na escolha das coisas simples da vida – de facto o que efectivamente interessa: o que fazemos da vida, que alegria partilhamos, que esperança promovemos?
Carregados de informação, com a “sabedoria” na palma da mãos, sentimo-nos isolados à procura do “algoritmo” que tudo explique e nos apresente o itinerário fácil, acessível e imediato. Mas vemos que a coisa não dá! E assim compramos o vazio que nos leva à floresta escura onde procuraremos os raios de sol.
A dimensão religiosa
Não é coisa de padres ou de bispos. A dimensão religiosa da vida é coisa experimentada desde sempre. E todos passamos por ela – uns mais tempo que outros – sabendo que sempre regressa como se fosse uma espécie de comichão que nos chama não sabemos bem para quê. Mas a gente “coça”. Dizem-nos que se trata da dimensão do “sagrado” esse apelo que pede explicação e raramente aceita ser desenhado em palavras. Fica aquele sentimento difuso do bem não alcançado mas apetecível.
É nesta transcendente “confusão” que nos interessam as lideranças religiosas – pessoas que por vocação e ânimo se dedicam à religiosidade das pessoas – que nas nossas paróquias e dioceses têm a missão que aceitaram e à qual dedicam a vida: presidir e orientar a construção de cada igreja local.
Os líderes são pessoas
Destes líderes esperamos a excelência – porque nos falam do Bem Maior – e quase esquecemos que são homens e mulheres como nós que precisamos do sol dos dias, do abraço da surpresa, do carinho do olhar, daquelo sentimento expresso em silêncio pelos olhos dos amigos quando nos dizem: se precisares, estou aqui!
São homens e mulheres que abdicaram do que para nós é fundamental: o calor de uma família, a alegria nos olhos que são os nossos filhos e os nossos netos. Pessoas que abdicam do que para nós é excepcional, para estarem ao nosso serviço. Como lhes podemos e devemos agradecer?
Em primeiro lugar precisamos de lhes dizer isso! É simples e muito necessário: estamos agradecidos pelo vosso trabalho, gratos pela vossa opção, e que estamos cá “para o que der e vier”.
Em segundo lugar aclarar que “são dos nossos” exactamente porque somos e pertencemos ao que nos liga e religa, a nossa experiência de fé; e que nela têm um papel fundamental.
Em terceiro lugar, convidá-los para a “festa da vida” dado que “são dos nossos” e com eles queremos e temos de fazer o caminho, seja penoso ou não.
Os nossos líderes lembram-nos na missa de domingo a necessidade de darmos testemunho na vida comum dos dias. Talvez tenha chegado o momento de nós os convidarmos a visitar o nosso local de trabalho, a partilhar do pão do dia, a conversar sem tino porque o desatino é criador, a rir em comum porque a fé nos alegra, a brincar com as coisas comuns porque nos são fornecidas pela vida.
Os nossos líderes são pessoas. Como nós também vivem, sorriem, sonham e choram. Eles e nós temos pela frente o “penoso caminho” indicado pelo senhor presidente da Conferência Episcopal. Venceremos!
Arnaldo Meireles