Pelo menos uma vez no ano, o povo manda – nos outros dias não se governa mas também não se deixa governar. E é nesta dialética que a vida corre, apesar das notícias que apontam o lado escuro do céu quando insistimos em quer ver o céu azul carregado de sol.
Muitos foram os cortejos por todo o país. Escolhemos um relativamente pouco conhecido, até para se perceber que esta festa é mais real do que parece. Um cortejo carregado de alegria, ironia e livre – apenas dependente da vontade e da criatividade de quem se quis divertir e assim percorrer a estrada nacional, carregada de milhares de pessoas nas bermas para assistir. Foi bonito, engraçado: foi Carnaval, em Seroa, Paços de Ferreira.
Como nasceu o Carnaval, o povo a mangar?
Admite-se que a ideia tenha surgido na Idade Média, embora tenha características herdadas de festas populares da Antiguidade. “Carnaval” é uma palavra que deriva do latim “carnis levale”, que significa “retirar a carne” e tem relação com a função da festa nas suas origens.
Tradicionalmente, o Carnaval tem como mote a ideia de subversão da ordem, na qual as coisas deixam de ser como são, para, temporariamente, assumirem o seu contrário. Trata-se de um período no qual as pessoas se entregam às festas e aos prazeres carnais, para, em seguida, iniciarem a Quaresma.
Como surgiu o Carnaval? O povo a Mangar!
O Carnaval é uma festa popular tradicionalmente cristã, apesar de algumas de suas características remontarem a celebrações realizadas por diferentes povos pagãos na Antiguidade. A relação entre o Carnaval e o cristianismo está na proposta da Igreja de canalizar os “impulsos carnais” dos fiéis em uma data apenas, para, depois, impô-los um período de restrição e jejum.
Considerando a Antiguidade, podemos traçar aproximações do Carnaval com celebrações de diversos povos, como mesopotâmeos, gregos e romanos. No caso daqueles, podemos mencionar uma festa conhecida como Sacéias. Nela, um prisioneiro era escolhido para substituir o rei durante cinco dias. Nesse período, inicialmente, o prisioneiro desfrutava do poder e dos privilégios reais, mas, no fim, era espancado e executado.
A ideia central das Sacéias engloba um elemento herdado pelo Carnaval cristão da Idade Média: a ideia do mundo invertido. Lembremos que o prisioneiro transformava-se em rei durante cinco dias, para ser sacrificado em seguida. Essa lógica está presente no Carnaval até hoje, quando as pessoas fantasiam-se e assumem um papel que não é o delas, por exemplo.
Na Grécia e Roma antigas, também existiam festas com fartura de alimentos, alto consumo de bebidas alcoólicas e danças, além da entrega das pessoas a outros prazeres carnais. Eram festas que podiam ter associação com algum culto religioso. Um exemplo disso era a Lupercália, festa romana realizada no mês de fevereiro.
A Lupercália era uma celebração de passagem de ano cujo objetivo era afastar maus espíritos e realizar uma purificação para garantir a fertilidade. Era muito tradicional e teve alguns de seus elementos transmitidos para as celebrações do Carnaval, segundo apontam os historiadores.
Relação do Carnaval com o cristianismo
Apesar de ser uma festa bastante secularizada, o Carnaval, na forma como o conhecemos, surgiu como uma celebração cristã. Todas essas celebrações pagãs, com muitas festas, bebedeiras e outros tipos de prazeres, eram condenadas pela Igreja. Assim, a Igreja resolveu condensá-las num período do ano que antecedesse a Quaresma.
Desse modo, os fiéis tinham um momento para extravasar todos os seus impulsos antes de iniciarem sua restrição. A Igreja tentou impor regras a eles durante o Carnaval, mas fracassou nisso durante todo a Idade Média. A festa, portanto, seguiu sendo um momento de inversão da ordem e de satisfação dos impulsos carnais.
De toda forma, a posição do Carnaval, realizado antes da Quaresma, é algo proposital estipulado pela Igreja, como uma forma de separação entre o movimento de celebração e o de seriedade religiosa.
Carnaval, o povo a mangar na Europa
O Carnaval durante a Europa medieval era um período de subversão da ordem, definida na ideia do “mundo invertido”. As festas carnavalescas, geralmente, saíam do controlo do ideal proposto pelas autoridades religiosas. Muitos homens fantasiavam-se de animais e utilizavam máscaras, duas práticas condenadas pela Igreja.
O Carnaval era uma festa tipicamente urbana e referia-se ao período do renascimento urbano medieval. Todavia, essa tipicidade não era exclusiva, pois a festa também acontecia nas zonas rurais. Havia também a prática dos homens de fantasiarem-se de mulheres, além de, muitas vezes, as festas saírem do controlo e resultarem em pancadaria generalizada.
Durante a Idade Média e a Idade Moderna, as festas carnavalescas podiam estender-se por até dois meses, e, muitas vezes, eram entendidas pelas autoridades como uma forma de garantir a ordem social, uma vez que o povo, podendo extravasar os seus impulsos e desejos durante o Carnaval, podia, depois, ser mais facilmente controlado.
Importante dizer que mesmo as autoridades juntavam-se ao Carnaval, talvez como uma forma de garantir o seu prestígio perante as massas. No Carnaval europeu, as festas aconteciam nas ruas com peças teatrais, bailes de máscaras, passeatas de carros alegóricos, apresentações musicais etc.
As brincadeiras e os insultos também eram características fundamentais do Carnaval. Um dos insultos mais conhecidos e mencionados pelos historiadores são os charivaris, espécie de justiça popular contra um indivíduo que não se enquadrava no que era considerado tradicional naquela época.
Sendo assim, homens traídos ou pessoas que estavam em um segundo casamento, por exemplo, podiam ser alvo de zombaria pública durante o Carnaval. Um grupo de jovens podia ficar na frente da casa de uma pessoa, zombando dela e só saindo de lá se recebesse algum pagamento em dinheiro, por exemplo.
A partir do século XVI, esboçam-se algumas iniciativas de controlo do Carnaval por meio de uma associação da Igreja com o poder público. Proíbem-se festas nas ruas e a realização de peças teatrais, por exemplo. Essas iniciativas tinham como causas as tentativas da Igreja Católica de conter os abusos e do poder público de ampliar o controlo sobre as massas. Tentações de sempre!
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