A mensagem remonta ao evangelho de São Marcos, mais especificamente à passagem que define os apóstolos — e, por extensão, os religiosos que os sucederam — como “pescadores de homens”.
Mas o anel também carrega uma certeza histórica. Pela tradição católica, o primeiro papa foi o homem que tem sua imagem ali impressa: Pedro, um dos doze homens que foram escolhidos pelo próprio Jesus Cristo para acompanhá-lo e auxiliá-lo em suas andanças repletas de pregações e relatos de milagres.
No fim, os elementos mais detalhados sobre sua vida estão mesmo na Bíblia, salpicados em diversas passagens — Pedro é o apóstolo de Cristo com mais menções no livro sagrado.
“Tudo o que sabemos, concretamente, sobre Pedro está nos evangelhos”, comenta o pesquisador e estudioso da vida de santos José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará.
Segundo o texto sagrado, ele e seu irmão, André, viviam da pesca no imenso lago conhecido como mar da Galileia.
“Eles teriam sido os primeiros a ouvir o chamado de Jesus”, diz Lira. Acredita-se que Pedro havia nascido no povoado de Betsaida e, na época, morava na cidade de Cafarnaum.
De origem simples, ele deve ter impressionado Jesus pelo seu jeito.
“Os evangelhos deixam claro que era uma pessoa de personalidade forte e espírito de liderança”, comenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
“Tanto que o próprio Jesus se hospedou em sua casa quando iniciou sua missão. Talvez por causa desse seu jeito, o Messias o tenha escolhido como seu mais importante colaborador.”
Professor na Faculdade de Teologia São Bento, padre Jorge Luiz Neves da Silva enaltece o fato de ele ter sido um pescador iletrado e, mesmo assim, assumido papel importante na missão cristã.
“Os evangelhos são unânimes nessa realidade e é preciso ter em conta a lógica da vocação na sagrada escritura: é uma constante que sejam chamadas as figuras que não seriam naturalmente escolhidas sob a perspectiva humana”, comenta.
Antes do encontro com Cristo, ele não era um religioso.
“Sabe-se que fora casado porque nos evangelhos lemos que Jesus curou a sogra dele. Jesus era de Nazaré e se mudou, em sua vida pública, para Cafarnaum. Morou na casa de Pedro. Não é claro se sua mulher ainda era viva”, contextualiza Lira.
“Em dado momento do evangelho de Mateus, Pedro pergunta a Jesus se é lícito pagar impostos, e o mestre afirma que sim. E pede para que Pedro pagasse seu imposto e o de Jesus também, com uma moeda que encontraria na boca de um peixe que pescaria. É um milagre, mas, se observa a importância do apóstolo. É ele também que reconhece que Jesus é o filho de Deus”, acrescenta o hagiólogo.
“A ele Jesus determina ‘apascentar as ovelhas’ e diz, ‘tu és pedra e sobre esta pedra edificarei minha Igreja’, ou seja, sobre sua liderança. O interessante é que o próprio texto bíblico afirma que o apóstolo que Jesus amava era João, mas, foi a Pedro que ele confiou a Igreja, mesmo considerando que ele era impetuoso às vezes, aparentemente corajoso, forte”, completa.
Pedra fundamental
A passagem bíblica que justifica o entendimento dele como primeiro papa da Igreja está no capítulo 16 do evangelho escrito por São Mateus. Nela, Jesus olha para o apóstolo Simão e afirma: “Pois eu também te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.
Quem era Simão torna-se Pedro. E Pedro porque pedra. Daí o entendimento cristalizado, com o passar dos anos, de que ele teria então sido nomeado o primeiro líder da Igreja, a rocha sobre a qual a nova religião seria erguida.
Baseada em suas pesquisas sobre a história do cristianismo, Medeiros pondera: é preciso compreender o que significava “papa” naquele contexto primitivo.
“É preciso entender esse título como ele era empregado nos primórdios do cristianismo”, explica.
“A palavra, cujo significado é ‘pai’, era bastante difundida entre os primeiros cristãos”, pontua. Ela lembra que, então, não era apenas “o bispo de Roma” que merecia tal tratamento.
“Vários bispos eram chamados assim, bem como alguns sábios da própria comunidade”, acrescenta.
“É tão verdade que, até hoje, o líder máximo da Igreja Copta, no Egito, também é chamado de ‘papa'”, exemplifica.
“Por isso mesmo, nós, historiadores, preferimos chamá-lo de ‘bispo de Roma’ quando tratamos do ‘papado’ dos primeiros séculos do cristianismo.”
Ela ressalta que o papado, enquanto instituição, ainda não existia. O primeiro movimento em direção a reconhecer uma primazia do bispo de Roma sobre os demais data do século 3°, sob o comando do papa Calisto 1° (155-222).
“Damásio 1° ampliou essa discussão [no século seguinte], pontuando que existia uma autoridade moral da qual o bispo de Roma era revestido, que o distinguiria dos demais”, conta Medeiros.
“A instituição ‘papado’, que assume um papel jurídico e institucional, só foi acontecer com Leão 1°, no século 5°, e Gregório Magno, no século 6°. No século 8°, essa instituição começou a se consolidar, pois o papa não somente se destacava como uma autoridade religiosa, mas também temporal”, argumenta ela.
Lideranças e divergências
Ressalta que as escrituras deixam evidente esse papel fundamental de Pedro à frente dos primeiros cristãos.
“Fica claríssimo que ele era aquele que dava os contornos daquela comunidade nascente”, diz.
Apesar de sua proeminência sobre os demais apóstolos, o papel de liderança exercido por Pedro não foi um privilégio dele.
Na realidade, todos os primeiros seguidores de Cristo acabaram se espalhando e fundando comunidades em diversas regiões.
Medeiros conta que como “coordenador e fundador”, atribui-se a Pedro a “organização de um grupo de adeptos da nova religião em Antioquia, na atual Turquia”, isso logo depois dessa dispersão inicial dos primeiros cristãos.
“Essa organização não ocorreu como um processo imediato. Foi um processo longo e orgânico, que não se deu de forma homogênea”, lembra Silva.
Havia desentendimentos, é claro. No encontro de lideranças que acabou entrando para a história como o primeiro concílio da Igreja, no ano de 51, em Jerusalém, Pedro assumiu uma postura mais conservadora frente a Paulo.
“Naquele que ficou conhecido como o primeiro concílio da Igreja, o de Jerusalém, vemos a divergência dele com Paulo. Para Pedro, os cristãos tinham de se submeter aos costumes judaicos. Paulo, e também Barnabé, defendia que o cristianismo era para todos”, relata Lira.
Lira conta que nesse primeiro concílio, o próprio Pedro se afirma o encarregado da missão de tomar as rédeas do cristianismo.
Segundo o hagiólogo, essa liderança já era notada em passagens do evangelho.
“É interessante observar que, no momento do anúncio da ressurreição feito por Santa Maria Madalena e as outras mulheres que a acompanharam ao santo sepulcro, João, muito mais jovem que Pedro, chegou antes ao túmulo. Mas esperou Pedro, para que ele ingressasse primeiro, demonstrando, claramente, a hierarquia. Pedro era o líder.”
Roma
Se é certo que Pedro esteve em Antioquia e em Corinto, a sua presença em Roma, onde estaria o seu túmulo e onde a sede da Santa Sé acabaria erguida em sua memória, ainda hoje é controversa — trata-se de uma questão de fé, mais do que de historiografia.
A maioria dos historiadores, tendo como base as fontes do segundo século do cristianismo, principalmente aquelas que trazem relatos de alguns escritores cristãos quase contemporâneos de Pedro, como Inácio de Antioquia e Clemente Romano, ambos do século 2°, não são completamente céticos em relação a isso”, diz Medeiros.
“Há inclusive uma forte chance de que ele tenha sido martirizado no ano de 64, durante a famosa perseguição de Nero, realmente”, acrescenta ela.
A pesquisadora ressalta, contudo, que não é verdade que Pedro tenha sido o fundador da primeira comunidade cristã de Roma.
“Todos são unânimes em considerar que ele não fundou a comunidade de Roma. Quando ele chegou por lá, pelos idos de 62, a comunidade já existia. Acredita-se que alguns soldados romanos, convertidos à nova religião, tenham difundido o cristianismo na capital do império”, diz Medeiros.
“É certo que esteve em Antioquia e Corinto. Depois da reforma protestante se incrementou essa ideia de que ele não esteve e não teria morrido em Roma, mas, isso hoje já é pacífico tanto na história quanto na hagiologia e até mesmo entre os protestantes. Dados ainda do primeiro século dão notícias da morte ou martírio de Pedro em Roma”, acredita Lira.
“E depois de seu apostolado é que se têm os pontificados por ele iniciado e que têm no atual Papa seu sucessor. A questão de ele ter ido a Roma é parte da ordem de Jesus: ‘Ide por todo o mundo…’. Roma era o centro do mundo de então e foi ali que se formalizou a Igreja Católica, a igreja cristã.”
Para considerá-lo primeiro papa, isso pouco importa.
“A Igreja Católica não o considera o primeiro papa por ele ter sido fundador da comunidade local ou bispo de Roma. Ele não foi nenhum dos dois. Mas pelo seu martírio. A morte dele, na verdade, segundo a crença católica, teria transformado o local em cidade-sede do cristianismo ocidental. Seria o evento fundante do episcopado romano”, conta Medeiros.
Em diversos textos antigos há referências ao martírio de Pedro, juntamente com Paulo.
Os indícios seriam de que ambos teriam sido executados por romanos no antigo Circo de Nero, que ficava justamente onde hoje é a Cidade do Vaticano.
Lira atenta para o fato de que era de se supor que os primeiros cristãos buscassem preservar o túmulo de Pedro.
Medeiros atenta para o fato de que na época da construção da primeira Basílica de São Pedro, “edificada por Constantino no século 4°, a tumba foi posicionada ali”.
No século 20, esforços arqueológicos foram empreendidos para tentar localizar resquícios do túmulo.
Trabalhos conduzidos pela arqueóloga Margherita Guarducci (1902-1999) localizaram, junto aos restos dessa antiga igreja, uma tumba com a inscrição, em grego: ‘Pedro está aqui’.
“E há relatos que confirmam que esses restos mortais, antes de se estabelecerem num local fixo, tinham sido preservados nas catacumbas de São Sebastião, também em Roma”, acrescenta Medeiros.
“Por lá, há inclusive algumas inscrições de peregrinos que pediam a intercessão de Pedro, os quais, em passagem por Roma, faziam essas visitas aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo.”